Deus, Freud, Pais e Filhos
- GABRIEL ZEINI
- há 6 dias
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No imaginário do homem, antigo e contemporâneo, os pais exerceram e exercem um papel dominante, chegando a servir de matriz na percepção da realidade dos seus filhos. Invariavelmente, a imagem dos pais determina, em quase todos os casos, a visão de mundo dos seus descendentes. Poucos foram e têm sido aqueles que superaram a influência simbólica e emocional dos seus pais e desfrutaram, em suas próprias vidas, um caminho e um sentido que vai além do círculo paterno e materno. Não deixaram de amar seus pais, apenas deixaram de ser subjugados pela imagem deles. Suas escolhas e consciências tornaram-se livres e, como feitos novamente, passaram a se sentir atraídos por motivos mais elevados, que transcendem o círculo parental. Em outras palavras, indivíduos autorrealizados.
Mas esta é a exceção, e não a regra. O que vemos acontecer é o contrário: a predominância das imagens parentais e o seu adoecimento na alma dos filhos. E um campo que anuncia este quadro com todas as cores e tons é aquele que faz fronteira entre a Psicologia e a Religião.
Após realizar uma pesquisa biográfica e psicológica sobre Freud, a pesquisadora e psicanalista Ana-Maria Rizzuto (1998) constatou que os laços que Freud manteve com a Religião ao longo de sua vida, inicialmente expressos na adolescência, foram expressivamente ambíguos e recorrentes.
Freud – sabem todos os leitores de Psicanálise – dedicou muito do seu tempo e textos ao tema da Religião, que o atraiu para uma espécie de reação, de afeição às avessas, a ponto de ambicionar o papel de destruidor das “ilusões religiosas”. E como sabemos, o seu empreendimento jamais alcançou (porque jamais alcançaria) os resultados por ele esperados.
Rizzuto, então, nos informa, em sua investigação, as relações afetivas de Freud com os pais Martha e Jackob durante sua infância. Com a mãe, Freud tinha uma relação distante e, ao mesmo tempo, narcisista. Sua mãe, apesar de ausente nos cuidados afetivos desde a mais tenra infância, sempre colocou o filho no lugar de escolhido, de pretendente à fama. Acreditava que ele faria justiça à pobreza da família e que seria um homem mundialmente reconhecido. De certo modo, o lote (destino) de Freud estava todo narrado nos domínios fantasiosos de sua mãe, o que efetivamente se cumpriu.
Adulto, Freud sentia-se profundamente incomodado na presença da mãe, a ponto de desenvolver sintomas de gastrite. Quando velho, não foi ao seu enterro, mas pediu que sua filha Anna o representasse. Ao longo de sua vida, revela-nos Rizzuto, a representação da mãe na vida emocional do pai da Psicanálise, condensou-se em uma representação de perigo e morte. Em relação ao pai, sua representação evocou ruídos, furos e brechas que, na mente de Freud, foram enquadrados como sinônimo de fracasso.
Com traços já manifestos na adolescência, Freud desenvolveu uma personalidade estoica e autossuficiente, que, progressivamente, enquadra o Deus de toda Religião como uma ilusão projetada de mentes infantis e inseguras. A ilusão religiosa seria então uma espécie de ópio cujas miragens não passam de traços psicopatológicos radicados no desamparo infantil do sujeito. Este Deus ilusório que Freud defende ecoa a partir da imagem e semelhança dos pais da infância. Protetores ou ameaçadores, estes pais servem de matriz para que a imagem religiosa seja condensada e formalizada na psicologia dos seus filhos.
Em parte, Freud tem razão. Deus, o princípio que transcende a toda e qualquer representação, realmente assume as características dos pais da infância. E para Freud, tornou-se o deflagrador de todas as suas rejeições afetivas direcionadas aos pais.
Este mesmo quadro se manifesta nas mais variadas famílias. Em pesquisa publicada em 1979, Rizzuto concluiu que os pais da infância fornecem os contornos afetivos e cognitivos que dão forma à imagem de Deus. Pais ausentes e distantes usualmente reforçam a imagem de um Deus vago, impessoal e indiferente. Pais demasiadamente rígidos e ameaçadores tendem a formatar a imagem de um Deus persecutório e vingativo. Pais lúcidos, amorosos e dedicados, por sua vez, fornecem material para a construção de uma visão da divindade positiva e acolhedora.
Não há como escapar desta matriz fundamental tecida nas tramas afetivas dos pais com seus filhos, pois é ela que nos envolve emocionalmente durante a infância. No entanto, podemos ultrapassá-la de acordo com o nosso amadurecimento.
A evolução da consciência e da personalidade individual decorre de uma emancipação simbólica e emocional dos pais, agora transferida para valores de grandeza que ultrapassam o círculo parental. Isto significa que o ser humano precisa ir além; ir ao encontro de novos sentidos, de metavalores que estimulem sua mentalidade para compreensões antes indisponíveis. Psicologicamente, isto significa um salto de maturidade, em razão do qual o indivíduo, livre do emaranhado emocional relativo aos pais, dispõe de um novo senso de identidade que o capacita a viver uma nova estabilidade interior.
Mas como isto é possível?
É possível à medida que o indivíduo faz passagens simbólicas ao longo de sua vida, em razão de sua consciência interior. Velhos símbolos são superados e servem de plataforma para novos, de modo que o valor da vida agora transcende os círculos anteriores, estreitos e passionais. O Deus que aprendeu a conhecer na religião agora é reconhecido em uma esfera significativamente mais ampla e intimista, que, na mesma proporção, é capaz de mudar e redefinir a personalidade do indivíduo.
Os antigos gregos já observavam esse desenvolvimento da personalidade e o denominaram de metanóia (mudança, conversão da mente). A vida emocional, anteriormente afetada pelas relações íntimas e passionais, agora manifesta uma maior liberdade interior, em razão do aumento da consciência e sua melhor compreensão. Não mais impulsionado, porque não mais identificado aos seus complexos reativos de culpa, medo e insegurança, o ser humano pode então fruir um sentido mais amplo em sua existência. De modo singular e próprio, descobre o que o psiquiatra vienense Viktor Frankl (23/03/1905 – 02/09/1997) denominou de “a presença ignorada de Deus”.
A família é importante, mas, apesar de sua importância, ela não é essencial no desenvolvimento psicológico do indivíduo. Para se tornar ele mesmo, assumindo as proporções de um indivíduo livre e emancipado de projeções e arrimos psicológicos relacionados às figuras originais do pai e da mãe, deve ir ao encontro de sua singularidade, do seu si-mesmo (self), formando daí uma nova imagem de Deus. Um Deus com quem pode se relacionar sem os véus deixados pelos pais e, finalmente, um Deus que, para o indivíduo, agora pode ser Pai.
Vitor Santiago Borges
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