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Habilidade e áreas de interesse na infância: O estado de flow e a personalidade autotélica

  • Foto do escritor: Vitor Santiago Borges
    Vitor Santiago Borges
  • há 1 dia
  • 5 min de leitura


            De acordo com relatos biográficos, ao trabalhar no teto da Capela Sistina, no Vaticano, Michelangelo Buonarroti (1475-1564) esteve de tal modo absorvido em seu trabalho artístico que ignorou a fome, o sono e o cansaço, submetendo-se ao desconforto até desmaiar de exaustão. Absorvido em sua atividade artística, chegava a esquecer de trocar as roupas e os sapatos, a ponto da pele dos pés criarem feridas quando se lembrava de retirá-los. Em virtude de sua capacidade de persistir no trabalho criativo, desconsiderando a fome e a fadiga, é possível caracterizar Michelangelo, tal qual conceituado pela área da Psicologia que estuda a motivação, como sendo uma “personalidade autotélica” – do grego autos (eu), e telos (fim).

Trata-se do indivíduo que desfruta significativamente de sua atividade, deixando-se absorver completamente enquanto retira da mesma o máximo de motivação e gratificação. Geralmente, tais pessoas fazem as coisas por razões intrínsecas e pelo elevado contentamento que extrai delas, em vez de buscarem nelas uma meta, um resultado esperado ou um objetivo externo em relação à atividade, como por exemplo, o reconhecimento por parte de terceiros.

A experiência de realização em torno de determinada atividade não visa um fim, pois o próprio processo já é o fim desejado. É como o escritor que não escreve um livro para se divulgar ou se tornar reconhecido, mas simplesmente porque escrever o faz se sentir vivo e realizado, levando-o àquele estado de profunda gratificação, denominado flow pelos psicólogos que estudam a criatividade e as bases da motivação intrínseca.

            Desde os primeiros estudos sobre o processo criativo, realizados na década de 1960, pesquisas qualitativas e quantitativas que exploram as bases da motivação intrínseca vêm observando o perfil de pessoas que buscam atividades com grande fervor e dedicação, sem que haja qualquer tipo de recompensa externa para isso. O substrato dessa motivação (flow) exprime o estado de viver em “capacidade total” voltado para um trabalho ou atividade que envolva a experiência criativa.

Até o presente, as observações que apontam para o estado de flow o definem como um estado subjetivo que envolve as seguintes características: 1. Concentração intensa e dirigida naquilo que se está fazendo no momento; 2. Fusão de ação e consciência; 3. Perda da autoconsciência reflexiva, ou seja, perda da consciência de si mesmo como ator social; 4. Sensação de poder controlar as próprias ações, sentindo segurança de poder responder a tudo que aconteça a seguir; 5. Distorção da experiência temporal (sensação de que o tempo passou mais rapidamente do que o normal); 6. Experiência da atividade como sendo intrinsecamente gratificante, a ponto do resultado final ser apenas um efeito colateral do processo.

            A absorção, ou seja, o flow presente nessas experiências momentâneas de alto rendimento envolve basicamente uma intencionalidade da atenção. Em virtude da concentração intensa e do envolvimento exigidos para a atividade, ocorre uma fusão entre ação e consciência, em que a última encontra o seu fluxo genuíno na ação criativa, produzindo, assim, uma subtração da atenção voltada para o eu. O flow surge no momento em que o eu é completamente apagado do cenário da consciência. Pela ausência de crítica e preocupação com o próprio desempenho, somado a uma postura de mindfulness, caracterizada pela ausência de julgamento, a consciência se expande em direção ao flow profundo. Durante o tempo que passa absorvido nesse estado criativo, o envolvido tem sua percepção temporal distorcida por parte da consciência, pois, ao contrário da sensação experimentada em um estado de tédio, supõe que as horas passaram sem se dar conta deste fato. No dizer dos poetas, o tempo cronológico (objetivo) é superado pelo tempo kairológico (subjetivo, tempo do coração) em razão da experiência de deleite realizada. 

            Pesquisas longitudinais sobre flow levaram os observadores a constatar que sua ativação está diretamente relacionada às conquistas nos estudos, no trabalho e nos esportes. Csikszentmihalti e colaboradores (1993) observaram o desenvolvimento de adolescentes talentosos durante o ensino médio, e constataram que o compromisso com uma área de talento desde os sete anos se impõe paulatinamente pela identificação dessa área como fonte de flow aos 13 anos. As conclusões que surgem dessas pesquisas sugerem que a força de compromisso, a persistência e as conquistas realizadas pelos adolescentes estão diretamente vinculadas às experiências anteriores de flow. As recompensas intrínsecas desse estado de absorção estimulam não apenas a persistência em torno de uma determinada atividade, mas também a autoconfiança que se desenvolve a partir dela, promovendo uma boa autoestima.

            O conceito de “personalidade autotélica” vincula-se intrinsecamente ao estado recorrente de flow, pois seu desenvolvimento emerge do envolvimento experimentado em situações que demandam altas habilidades e desafios. Nos estudos psicológicos para adolescentes norte-americanos, esse perfil de personalidade se relaciona a estados afetivos positivos, como também à qualidade de objetivos pessoais em que o foco amadurece com clareza a partir do talento. Não é esperada a afirmação “eu quero ser famoso” em uma personalidade autotélica. Ao contrário, sua expressão tende a se caracterizar como “quero ser um talentoso desenhista”; “quero dominar essa arte ou habilidade”.

Em pesquisa realizada com adultos norte-americanos, Abuhamdeh (2000) observou que, quando comparada com pessoas que não apresentam tais características, a personalidade autotélica opta por situações nas quais o seu crescimento é estimulado, envolvendo-se em todas as oportunidades capazes de desafiar suas habilidades. Outra constatação é de que tais circunstâncias tendem a apresentar baixo estresse, pois os envolvidos mantêm seu interesse no quadrante de fluxo (flow).

Como o estado de flow promove recompensas intrínsecas para a saúde mental, um dos objetivos da Psicologia Positiva é ajudar as pessoas a identificar as atividades que estimulem o flow, mediante duas perspectivas que perpassem suas rotinas: 1. Encontrar e dar forma a atividades e ambientes que conduzam mais a experiências de flow e 2. Identificar características pessoais, áreas de interesse e habilidades de atenção que possam ser aprimoradas para aumentar as probabilidades de flow.

Como o estado de flow e a personalidade autotélica que dele se desenvolve se baseiam em um reconhecimento do próprio talento e da área de interesse que o promove, é lícito questionarmos os padrões de desenvolvimento pessoal em torno de nossas atividades desde o ensino fundamental. Vivemos um modelo pedagógico generalista que condiciona os indivíduos a reproduzirem informações comuns em vez de estimular talentos individuais. Esta educação, que promove mais a domesticação em torno da informação do que o estímulo da aptidão intelectual, vem produzindo indivíduos desplugados dos seus talentos e predicados individuais.  Sobreposto a isto, em muitas experiências familiares da atualidade, vemos se reproduzir a lógica da imposição das expectativas paternas sobre os interesses originais dos seus descendentes. Um indivíduo que nasce com o interesse e talento para ser pianista muitas vezes precisa colidir ou não com as expectativas dos seus pais. A ausência ou a ocorrência do “embate” irá depender do temperamento do jovem, se é mais agressivo ou mais passivo. Pais críticos e cheios de expectativas narcisistas em relação aos seus filhos, ou pais frustrados, que não conseguiram realizar os próprios sonhos, sabotam um talento de forma tão inconsciente quanto inconsequente. Esforçam-se em domesticar seus filhos forçando-os aos seus desejos, sem se ocuparem em perceber os talentos e interesses naturais dos seus descendentes. As demandas coletivas solapam e sabotam o desenvolvimento das singularidades, e como a singularidade é a característica mais profunda e definidora de todos nós, precisamos resistir de modo atento e com os “olhos abertos” as pressões expectantes dos familiares e da cultura de entorno, para nos tornarmos o que podemos ser a partir da autoconsciência de nossos interesses mais profundos e habilidades mais naturais.   

         Um dos grandes desafios da Psicologia e da Pedagogia atuais é fornecer modelos e parâmetros saudáveis que esclareçam e estimulem os talentos individuais, em vez de generalizar formatos e padrões que dissociem os indivíduos de suas áreas de interesse mais fecundo, vinculadas ao desenvolvimento de suas personalidades. Quanto maior o número de personalidades autotélicas, melhor o desenvolvimento e enriquecimento da cultura em que vivem.


Vitor Santiago Borges – Mestre em Psicologia Clínica

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